Dando sequência à primeira exposição realizada no final de 2014, Ana Vasconcellos, Bernadeth Cavalcantti e Rosa Calheiros apresentam novos trabalhos onde estéticas e temáticas barrocas são confrontadas com o mundo contemporâneo.
Quatro grandes temas guiam os trabalhos de pintura aqui apresentados:
Transitoriedade do Mundo
Homem Como Lobo do Homem
A Loucura do Mundo
Autorretrato Sob Luz Intensa
A percepção do mundo como local de passagem, de estruturas extremamente instáveis e transitórias é típica da estesia barroca: a vida é passageira, a sorte é lançada a cada momento e tudo pode mudar a todo segundo. A ideia de transitoriedade, porém, se irmana a de eternidade: de um lado um mundo que não passa de "não permanência"; de outro um mundo que infinitamente se refaz.
Para expressar sua ideia de transitoriedade do mundo Ana Vasconcellos aborda os ritos de passagem, a vida e a morte e os misteriosos desdobramentos e experiências de quase morte. A sensação de transitoriedade que povoava a mente barroca e alertava para uma vida futura de prestação de contas é trabalhada pela artista pelo viés do aprendizado que purifica o coração.
Segundo infinito traz, segundo Rosa Calheiros, o intrincado enigma do 'tempo que flui' e 'do tempo que não flui'. Pode haver um outro infinito, um segundo infinito? Mas o quadro fala também de um segundo, uma fração de tempo, que rasga este mesmo tempo e que se torna também infinito, não por fluir eternamente, por ficar paralisado em nossa memória.
O giro perpétuo das águas muitas vezes nos faz pensar que este ciclo é eterno. Realmente, por muito tempo parece ter sido assim. Porém, a intervenção irresponsável e desmedida do ser humano tem conseguido abalar esta matriz primordial da vida.
Com Gota d’Água Bernadeth Cavalcanti invoca a ideia de fonte eterna enquanto faz um alerta sobre o tempo que ainda resta para revertermos os danos causados às águas do planeta, lembrando que talvez só falte 'uma gota d’água'.
A ideia de um homem mau por natureza povoa a mentalidade barroca ao lado da certeza de que um Deus bom o fez a sua imagem e semelhança. Como pode um homem mau por natureza ser imagem e semelhança de um Deus bom por natureza? Será o mau um bem degenerado? Será o mau um bem egoísta? Existirá o mau em si? A conexão entre um bem que é anunciado como possível e a percepção de um mau que se manifesta a todo instante mantém viva a eterna questão da ameaça que o outro representa.
Na mata o lobo é o lobo; na cidade o lobo é o homem. Para a artista nada representa mais o medo que se sente do outro de que o viver trancado em moradias ricas e confortáveis, mas das quais se é irremediavelmente prisioneiro.
Bala Perdida é uma reflexão sobre o vazio e o desencanto como partes de um mundo 'humanamente violento'. Como não se bastassem as forças da natureza, como tempestades e terremotos, o ser humano cuida ele mesmo de destruir o outro. Na obra de Rosa Calheiros uma bala perdida atravessou a cidade, levou o sonho, levou a esperança, levou a criança.
O massacre dos povos indígenas, seja pela aculturação que desrespeita suas crenças e origens, seja pelo massacre deliberado, é lembrado por Bernadeth Cavalcanti como signo do Homem Lobo do Homem.
Às mulheres que foram e são massacradas ao longo dos séculos, Bernadeth Cavalcanti apresenta sua Amazona que, real ou imaginária, é um símbolo persistente da luta feminina em face daqueles que se esquecem de que ninguém vem ao mundo sem passar pelo corpo delas, que para a artista é o verdadeiro portal da humanidade.
O pensador* que no século XVII divulgou a ideia de que o ser humano seria mau por natureza, escreveu sobre estas mulheres guerreiras que rejeitavam o convívio masculino, fazendo do tema uma face importante da estesia barroca do homem como lobo.
[*Thomas Hobbes. Leviathan. Capítulo XX]
Com 'Alvo' Ana Vasconcellos quis expressar o impulso destrutivo do ser humano em relação a um outro que não é percebido como igual. Em outras palavras, fala de uma absurda 'permissão para exterminar' os que não se enquadram no desejo totalitário de uma humanidade sem pluralidade de cores, raças, risos e crenças. Fala sobretudo do ódio aos que, mesmo não tendo como se defender, lutam até a morte.
Inferno é o título da segunda parte da Divina Comédia de Dante que Ana Vasconcellos escolheu para nomear seu trabalho. A obra de Ana remete à noção de responsabilidade pela destruição das florestas e nos lembra que todos sentiremos os 'hediondos vapores'*, consequência das matas que ardem movidas pela ganância desmedida do homem.
[* Dante, Inferno, Canto X, 136. Tradução de José Pedro Xavier Pinheiro (1822-1882)]
O mundo como incompreensível, como local de perpétuo estranhamento e perdição. No barroco se percebe que o 'contrário de tudo' não é o nada, mas simplesmente um 'tudo ao contrário' que rompe com os tênues limites da razoabilidade do mundo. E este 'tudo ao contrário' traz em si tanto a possibilidade de agregação dos opostos quanto a de rejeição estrutural do outro. A humanidade se entrega ao desejo intenso de buscar incessantemente 'coisas reais fugidias', deuses do momento e satisfações efêmeras. Um mundo percebido como 'louco' onde parece que só a realidade virtual merece o nome de realidade.
A ganância por herdar o céu muitas vezes nos faz parecer como loucos massacrando tudo ao nosso redor, massacrando a própria vida na terra. 'Virá' fala de fanatismo, de esperanças construídas pelo anseio de não viver no mundo, pela negativa de viver o 'aqui e agora' e pela recusa de torná-lo um lugar melhor.
É a representação da ganância e da inveja. As mãos que tentam alcançar 'a joia', agem rápido: cada uma quer pegar primeiro, ainda que nem se saiba exatamente o porquê.
Tanta riqueza, tanta miséria. Para Ana Vasconcellos é louco o mundo em que tanto se desperdiça quando tantos tem fome. A infância abandonada à mendicância é uma realidade avassaladora. Ainda que se considere correto que ninguém possa ser condenado pelo erro de outros, isto não parece ser verdade para as crianças que seguem sendo relegadas ao desamparo, punidas por alguma imaginada falha dos pais.
A opressão das mulheres, que muitas nem percebem mais, que são condenadas a jamais mostrarem o rosto em público. A artista trabalha o tema do mundo como louco pelo viés dos costumes e tradições que parecem despidas de toda razoabilidade.
No trabalho de Rosa Calheiros o 'livro que quer conter toda verdade' despreza todos os outros que giram conectados sem conseguirem ingressar naquele mundo fechado. O "Livro da Verdade" parece fruto de um desejo totalitário, de uma ambição desmedida de encerrar o conhecimento. Ele não ilumina nem é iluminado.
O incentivo ao consumo absolutamente exagerado é uma das loucuras do nosso tempo. Objetos são replicados aos milhões. Mas corram! Comprem! É a última.
Retratar a si próprio é típico deste nosso tempo de selfies. São sorrisos e mais sorrisos e mais sorrisos. Nenhuma sombra. Ninguém está triste. No barroco o autorretrato também andou na moda – Rembrandt pintou uma série deles por toda a sua vida. O tema do autorretrato sob luz intensa vem aqui para falar exatamente de um seu oposto: o que oculta a luz que revela?
Um jogo entre luz e sombra que fala de uma parte de nós que desconhecemos, como um nosso duplo, um outro ser que de forma misteriosa também nos compõe. Talvez sejamos nós mesmos vindos de outro tempo e lugar. Autorretratar-se é, para mim, retratar uma existência. Ninguém é só ele mesmo, somos muito mais do que isto.
A plenitude de um sentimento que nos conecta com tudo a nossa volta e que nos faz existir uma vida que só se torna possível na dimensão plural. Eu sou eu e toda esta energia vital que me faz existir.